domingo, 15 de dezembro de 2019

Corrupção, ética e governança corporativa


Um dos temas mais presentes na mídia e no cotidiano dos brasileiros tem sido a corrupção. E o tema ganha importância em períodos de eleições. Este será o caso, por exemplo, do ano de 2020, quando serão eleitos prefeitos para os 5.568 municípios brasileiros. Será importante para o Brasil que os eleitores escolham, para administrar seus respectivos municípios, pessoas com histórico de probidade, e cujo conhecimento, experiência e boa vontade possam agregar valor à sociedade.

Sobre corrupção: esta não é privativa de alguns países, estados ou cidades. Na realidade, ela, a corrupção, existe ao redor do Planeta e em vários setores das economias nacionais. No âmbito de um país genérico e de forma mais abrangente, diversas causas podem explicar a corrupção, tais como: sua ocorrência ao longo da história do país considerado, o tamanho do Estado, o excesso de burocracia estatal, o aparelhamento de organizações estatais por interesses alheios aos seus objetivos, a impunidade de corruptos e corruptores, em geral, e as práticas de governança corporativa das organizações. Diversas variáveis podem ser consideradas para medir a corrupção, como por exemplo, o peso da corrupção no PIB e os casos de corrupção relacionados a grandes empresas ocorridos ao longo de um ano. (*)

A corrupção nas organizações do estado ganha maior espaço nos múltiplos canais de mídia, por envolver recursos financeiros que pertencem à sociedade e pessoas que, supostamente, deveriam se comportar de forma correta no uso desses recursos; por vezes, que receberam o voto de confiança de eleitores. (*)

Reproduz-se a seguir os artigos 317 e do Código Penal vigente no Brasil, relacionados, respectivamente, à corrupção passiva e ativa (*): 

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Corrupção passiva

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

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Corrupção ativa

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

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Conforme se percebe, o termo corrupção, da esfera pública envolve dois agentes: aquele que é corrompido (pratica corrupção passiva, nos termos do art. 317) e aquele que corrompe (pratica corrupção ativa, nos termos do art. 333). (*)

Adicionalmente, não é apenas a corrupção que pode envolver organizações da esfera privada, em busca de benesses. Grandes escândalos de governança corporativa têm ocorrido no Planeta, associados a fraudes, com grandes perdas para as pessoas envolvidas, em várias frentes. Abaixo, apresentam-se três exemplos clássicos – três cases inesquecíveis – de péssima governança corporativa privada, para que se tenha em mente que grandes atos desabonadores não são uma questão apenas da esfera das organizações do Estado em seus relacionamentos com as demais organizações. (*)

Caso Enron

A Enron, um grupo empresarial de energia que chegou a ser o mais admirado dos EUA, com a suposta ciência de Kenneth Lay, principal acionista (que faleceu antes de seu julgamento pelo Poder Judiciário), manipulou dados contábeis para parecer que gerava lucro, além de ter ocultado dívidas e cometido outras ilicitudes. Os executivos financeiros Jeffrey Skilling e Andrew Fastow adotaram o procedimento mark to market (marcação a mercado), por meio do qual receitas de operações de anos futuros foram contabilizadas como ocorridas no presente, criando lucros irreais. Ademais, dívidas foram ocultadas via arranjos societários envolvendo a criação de sociedades de propósito específico (SPE’s), de maneira que não se percebesse a gravidade da situação; essas SPE’s também abrigaram operações arriscadas com derivativos. No início de dezembro de 2001, após divulgar forte prejuízo ao mercado investidor, a Enron pediu a proteção da Lei de Falência dos EUA. No dia 16 de janeiro de 2002, as ações da Enron deixaram de seu negociadas em bolsa de valores.

Caso WorldCom

Em 2001 e parte de 2002, com ciência de Bernard Ebbers, principal acionista e presidente executivo, e sob a coordenação de Scott D. Sullivan, diretor financeiro, a WorldCom, um grande grupo econômico do setor de telecomunicações dos EUA, além de fazer provisionamentos de despesas para o futuro, contabilizou despesas como investimentos. As medidas citadas foram tomadas no contexto da quebra da bolha das empresas pontocom, ocorrida em 2000, e das pressões de investidores do mercado de capitais dos EUA para que a Companhia apresentasse bons resultados. A auditora externa da WorldCom, Arthur Andersen, a mesma do caso Enron, não apontou nenhum problema com a contabilidade da Companhia, que era fraudulenta. A WorldCom foi reestruturada e seus ativos, posteriormente, foram adquiridos pela  VerizonCommunications. A aquisição foi finalizada em 6 de janeiro de 2006 e os ativos citados passaram a integrar a Verizon Business, uma divisão especializada em clientes corporativos e do governo.

Caso Toshiba

Em 2015, relatório resultante de uma investigação externa contratada pela própria Toshiba, do Japão, revelou que três de seus executivos-chefes tiveram ativa participação em uma fraude contábil de grande magnitude financeira, a qual havia aumentado o lucro operacional da Companhia desde 2008. Esses dirigentes criaram forte pressão sobre unidades de negócios que operavam com computadores pessoais, semicondutores e reatores nucleares entre outros produtos. Metas cujo alcance seria inviável, sem embasamento que as respaldasse, eram apresentadas aos executivos das UN´s e, consequentemente, procedimentos fraudulentos foram adotados em bases contínuas, encorajados pela cúpula executiva da Toshiba. O escândalo teve vários desdobramentos: em 21 de dezembro de 2015, foi anunciado o corte de 6,8 mil empregos (1/3 da força de trabalho da Companhia). E diante do escândalo contábil, vários investidores, especialmente estrangeiros, ingressaram na Justiça contra a Toshiba, por se sentirem prejudicados.

Nos EUA, a preocupação dos políticos com os desdobramentos de grandes escândalos como os da Enron e WorldCom culminaram na criação do Sarbanes-Oxley (SOX, 2001), então uma nova lei focada em aprofundar controles organizacionais, a qual gerou bilhões de dólares em gastos com sistemas de controle nas empresas abertas dos EUA e de outros países participantes do mercado de capitais estadunidense. A criação da SOX foi uma forte resposta institucional à ameaça percebida pelos políticos ao sistema econômico dos EUA, especialmente no que tange a uma possível crise de confiança do público relativa aos mercado de capitais e de ações.

Sobre os atos corrupção e os atos fraudulentos: o que diferencia aqueles praticados em várias nações, no que diz respeito às consequências? Em boa medida, a atitude da sociedade sobre o assunto, que tem a ver com a cultura ou regras do jogo não escritas vigentes, bem como os mecanismos formais criados para lidar com o fenômeno, que podem apresentar menor ou maior nível de tolerância e serem ou não efetivamente implementados. Nesse sentindo, cabe destacar a importância do enforcement, isto é, do cumprimento das regras legais, com ênfase na adequada punição. (*)

A corrupção, no contexto do Estado, e as fraudes da esfera privada certamente pioram o ambiente de negócios, tornando-o mais hostil e arriscado. A corrupção desvia recursos importantes para cofres alheios aos interesses sociais, onerando investimentos públicos e podendo onerar produtos e serviços oferecidos à sociedade por organizações estatais. Já as fraudes privadas têm um grande potencial para prejudicar, em grande medida, sócios e outros stakeholders (públicos relevantes) das organizações; no limite, conduzindo a organização à falência. E em um segundo limite ainda mais ameaçador, criando riscos sistêmicos para a economia de um país, como exemplifica o contexto que levou à SOX. (*)

Para os mercados de capitais, o combate à corrupção, às fraudes e a melhoria do ambiente de negócios nacional são muito importantes: investidores de todos os perfis terão apetite substancialmente maior pelo investimento em ações e por outros títulos emitidos por organizações empresariais, se estas forem dirigidas com ética e seriedade. Destaca-se aqui o papel primordial do próprio Estado na busca de seriedade, por meio de suas regras legais e organizações. Cabe ao Estado estabelecer regras formais adequadas e, por intermédio de um aparato institucional e jurídico robusto, assegurar o seu cumprimento (enforcement). (*)

Ao mesmo tempo, se o caminho da coerção de cima para abaixo é necessário, a seriedade também pode ser criada de dentro para fora, nas organizações estatais e privadas. Fundamentalmente, por meio do compromisso efetivo, verdadeiro, com os princípios clássicos da boa governança corporativa, quais sejam transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Compromisso este que gera o compromisso também efetivo e verdadeiro com boas práticas de governança corporativa.

Muito poderia ser dito sobre práticas de governança, mas neste breve artigo, focado no tema corrupção e em sua diferenciação em relação a fraudes do mundo privado, menciona-se a importância de processos decisórios efetivamente colegiados, envolvendo vários dirigentes, com várias cabeças pensantes comprometidas com a seriedade e o futuro da organização – com a sua sustentabilidade econômica, social e ambiental. Além disso, mencionam-se as políticas de relacionamento com stakeholders (públicos relevantes), tais como (entre outros):

1) as várias organizações do estado, especialmente no que concerne à conformidade com as obrigações legais e regulatórias, entre fiscais e outras;

2) partidos políticos e seus afiliados, registrando-se que contribuições a campanhas eleitorais já foram, mas não mais são permitidas no Brasil;

3) no caso de sociedades por ações, os pequenos sócios pulverizados por todo o mercado acionário, cuja grande maioria acompanha o que ocorre na empresa sem participar de sua administração;

4) empregados, incluindo-se aqui aqueles integrantes da cúpula da organização, o ambiente de governança corporativa. Organizações podem cumprir obrigações trabalhistas e, indo além do mínimo a ser feito, criar sistemas de recompensa reduzindo as possibilidades e oportunidades de corrupção e fraudes; e, (*)

5) fornecedores, lembrando que controles rígidos de compras e leilões via internet podem ser implantados e – novamente – reduzindo as chances e oportunidades de corrupção e fraudes. (*)

O tratamento dado aos temas corrupção e fraudes pelas organizações –  por todas as organizações da economia, estatais, privadas e outras – se decide no ambiente de governança corporativa, eis a verdade. E a interação com a sociedade, ao contemplar práticas baseadas na ética, pode prestar relevante serviço ao País e aos seus cidadãos. (*)

(*) Artigo revisado em 1/5/2023, nas partes indicadas com asteriscos (*), alterando-se a redação das variáveis que podem concorrer para a corrupção, diferenciando-se melhor os atos de corrupção da esfera pública das fraudes do ambiente privado e agregando-se os artigos do Código Penal relacionados a corrupção ativa e passiva. 

Mônica Mansur Brandão