Pode-se fazer um paralelo entre as duas pandemias: peste negra e Covid-19
Matéria recente da
BBC News Brasil, repercutida pelo jornal Folha de São Paulo – Dos Medici à Amazon: como pandemias ajudaram
megacorporações a crescer ainda mais (27/6) – discorre como grandes crises
sanitárias impulsionaram os proprietários de grandes riquezas, intensificando,
ao mesmo tempo, as mazelas sociais. Apresentam-se aqui alguns pontos de
destaque dessa matéria, além de reflexões sobre os mesmos.
Corria o ano de
1348, quando se teve notícia das primeiras pessoas na Inglaterra com sintomas
como dores de cabeça e no corpo e náuseas, aos quais se seguia o inchaço dos
gânglios linfáticos, que se tornavam escuros e dolorosos – os bubões. Daí advêm
as expressões peste bubônica e peste negra. Navios que traziam soldados
e mercadorias da Ásia Central trouxeram para a Europa a bactéria causadora da
peste, a Yersina pestis, egressa de pulgas
que viviam nos pelos dos ratos, habitués
dos porões dos navios.
A expansão comercial
aliada à carência alimentar da população tornou-se cenário propício para uma
pandemia. Entre 1348 e 1350, estima-se que de um terço a metade da população
europeia tenha sido dizimada pela peste bubônica e que a letalidade da doença tenha
se situado por volta de 80% dos infectados. O número de mortes pode ter sido de
75 a 200 milhões de pessoas pelo mundo.
Antes dos sinais citados
de uma doença séria, a Europa havia passado por um expressivo crescimento do
comércio e das colonizações marítimas e vivia uma explosão populacional, que gerou
um excedente de mão de obra. Essa situação havia levado o sistema feudal a uma
crise, pois o feudalismo não mais conseguia se manter autossuficiente na
produção de alimentos. A peste reduziu o excedente de mão de obra entre servos
e camponeses livres e terminou por agravar a crise do feudalismo.
A pandemia do
século XIV provocou uma devastação econômica generalizada por toda Europa e
acelerou a transformação no sistema econômico mundial da época. A crise do
sistema feudal acelerou a chegada do capitalismo. Os camponeses que
sobreviveram à peste passaram a demandar melhor pagamento ou a deixar os feudos
onde viviam, em busca de trabalho, deslocando-se para os burgos, as cidades que
emergiam da atividade comercial e da emergência de uma nova classe social, a
burguesia.
Apesar de a peste bubônica
ter causado um primeiro impacto negativo para os negociantes da época, no longo
prazo, eles foram beneficiados pela concentração de riqueza e pelo crescimento
de seu mercado e influência política. Naturalmente, as relações de comerciantes
ricos com os líderes políticos do fim da idade média tiveram um papel
importante na evolução dos fatos.
Com a peste
bubônica, empreendedores urbanos se beneficiaram da migração de pessoas para os
burgos; ademais, eles tinham capital para investir em novas tecnologias,
compensando eventuais carências de mão de obra. Diferentemente de tecelões
independentes, que não tinham capital, e de aristocratas, cuja riqueza vinha da
terra.
Se a peste bubônica
produziu forte redução na população europeia, ela não levou à redistribuição de
riquezas, mas, ao contrário, à sua concentração em mãos de famílias ricas, que
as transmitiram aos seus membros ao longo de muitas gerações.
Adicionalmente, a peste
bubônica do século XIV acelerou as tendências de centralização do poder,
aumento de impostos e da influência das grandes empresas sobre o poder dos
estados. Os Médici, por exemplo, de comerciantes de tecidos passaram a
produtores, banqueiros e, finalmente, a governantes hereditários de Florença, definindo
os nomes de alguns papas e influenciando várias regiões da Itália.
Pandemia versus
pandemia
É possível fazer
um paralelo, ainda que superficial, entre a peste bubônica ou peste negra e a
pandemia COVID-19? Sim, e a primeira consideração a ser feita diz respeito ao
papel da globalização em ambos os eventos. Na peste bubônica, destacam-se as
navegações como meio de disseminação do vírus que matou milhões de pessoas; na crise
COVID-19, enfatiza-se a mobilidade dos cidadãos no século XXI, cujos
deslocamentos pelo Planeta nunca foram tantos, até a crise ser deflagrada.
A segunda
consideração a fazer diz respeito ao número de mortos que, na crise sanitária
do século XIV (de 75 a 200 milhões de mortos), foi muito superior ao da crise
sanitária do século XXI (no patamar de 562.137 mortos, em 11 de julho). As condições
sanitárias da humanidade melhoraram significativamente, mas, nem por isso se
espera que os efeitos da crise sanitária atual nas economias nacionais não
sejam altamente preocupantes.
Destaca-se a contribuição
da peste para a aceleração do capitalismo nos burgos urbanos, espaços
produtivos da burguesia emergente, ajudando a enfraquecer um modus operandi feudal já decadente. Se
não tivesse ocorrido a peste, muito provavelmente o capitalismo seguiria evoluindo
e suplantando o feudalismo, mas a pandemia ajudou a acelerar as mudanças. A crise
COVID-19, por seu turno, tem apontado a necessidade de mudanças no sistema
capitalista; como por exemplo, o reconhecimento da importância de sistemas de
saúde públicos e da necessidade de combater assertivamente a desigualdade
social.
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