Os direitos humanos e fundamentais perpassam a pauta das empresas e demais organizações da economia e muitos de nós não percebemos. Os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos positivados, isto é, escritos na Constituição Federal - no ordenamento jurídico, de forma ampla.
Não haveria como a grande maioria dos cidadãos perceber que os DHFs têm a ver com governança corporativa e sustentabilidade, pois, em regra, a maioria dos cursos de graduação do Brasil e no mundo passa ao largo da disciplina; infelizmente, ainda substancialmente restrita a cursos de Direito.
Dito isso, o primeiro exemplo de como os direitos humanos e fundamentais têm a ver com governança e sustentabilidade pode ser visto no artigo Direitos humanos e sustentabilidade: Conexão indissociável, publicado por Cida Hess e Mônica Brandão no Portal Acionista. O artigo descreve como esses direitos estão conectados à sustentabilidade, um dos princípios mais caros da governança.
O segundo exemplo é recente e é nele que este breve artigo se concentra: o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para manter restrição imposta pela Lei nº 13.303/2016, a conhecida Lei das Estatais, a qual impede, em seu texto, a nomeação de políticos para cargos de direção nessas empresas, nos termos da Lei. Para a maioria dos julgadores da Corte Maior, a norma é constitucional (notícia aqui).
A decisão supracitada da Corte, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade ou ADI 7.331, reflete mais do que um debate: um embate muito, muito importante entre a defesa de direitos humanos e fundamentais e a necessidade de proteger o patrimônio público, por meio da Administração Pública e em benefício do cidadão. A Constituição Federal (1988) contempla tanto os direitos quanto a proteção em tela.
Abaixo, apresentamos alguns argumentos, contra e pró a constitucionalidade do trecho da Lei que coíbe a nomeação de políticos para cargos de direção, mas não sem antes reproduzir o trecho objeto da controvérsia ocorrida (apenas os incisos I e II do parágrafo 2º):
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Art. 17. Os membros do Conselho de Administração e os indicados para os cargos de diretor, inclusive presidente, diretor-geral e diretor-presidente, serão escolhidos entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento, devendo ser atendidos, alternativamente, um dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso I e, cumulativamente, os requisitos dos incisos II e III:
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§ 2º É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:
I - de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II - de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
I - de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II - de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
(Note-se, no inciso II, a criação de uma quarentena de 36 meses)
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A decisão dos Ministros do STF, face à ação constitucional encaminhada à Corte, teve que escolher e o resultado, a nosso ver, focou a defesa do interesse público. Dito isso, passemos aos argumentos a seguir.
I - Argumentos Pró-inconstitucionalidade
Seriam eles, de maneira resumida e sem exauri-los:
1. Restrição ao direito ao trabalho - as restrições impostas pela Lei violariam o direito fundamental ao trabalho.
2. Discriminação - a Lei seria discriminatória, ao restringir a participação de indivíduos com base em seu histórico político, o que pode ser interpretado como uma penalização injusta por atividade política constitucionalmente prevista.
3. Ofensa à livre associação - a Lei interferiria no direito à livre associação, também previsto constitucionalmente, ao impedir que indivíduos com experiências partidárias assumam cargos de direção em estatais.
4. Perda de potencial contributivo - ao excluir políticos e dirigentes partidários, a Lei desconsideraria habilidades e conhecimentos que poderiam contribuir positivamente para a administração de estatais.
II - Argumentos Pró-constitucionalidade
De forma resumida, os argumentos, não exaustivos, seriam:
1. Busca de eficiência e integridade - as restrições da Lei, ao evitarem o uso político deletério das empresas estatais, buscariam uma gestão técnica e profissional.
2. Despolitização da Administração Pública - a manutenção dos dispositivos da Lei ajudaria a despolitizar a administração de estatais, no sentido de prevenir nomeações baseadas em interesses políticos alheios ao conjunto da sociedade.
3. Prevenção de conflitos de interesse - ao proibir a nomeação de políticos com envolvimento recente em campanhas eleitorais, a Lei minimizaria o risco de conflitos de interesse, promovendo uma gestão mais imparcial.
4. Proteção da coisa pública - os dispositivos questionados seriam uma forma de proteger os recursos e interesses públicos, assegurando que as empresas estatais sejam geridas com foco em suas finalidades e, não, em interesses partidários ou pessoais.
Sobre o embate
Ambos os conjuntos de argumentações são importantes, não em função do resultado, mas do próprio embate em si. Independentemente do resultado da votação, embates dessa natureza no ambiente jurídico são possíveis. Contendas entre direitos e interesses individuais e coletivos podem ocorrer. E outras contendas entre disposições constitucionais também.
O coletivo será sempre privilegiado em relação ao individual? Depende do caso concreto que se considera. No Direito, o caso pode trazer elementos que tornem uma visão mais válida em relação a outra. A Constituição Federal protege tanto direitos individuais quanto coletivos e podem ocorrer embates que desafiam os julgadores.
E qual é a nossa opinião sobre os argumentos ligados ao embate?
Ao longo de anos, em artigos diversos (neste EG e em espaços onde colaboramos), temos defendido a governança corporativa e a sustentabilidade das organizações. Essa trajetória começa após a publicação da dissertação de mestrado denominada Governança corporativa e a influência dos acionistas minoritários no sistema de decisões estratégicas, que contempla um estudo científico sobre o tema.
A nosso ver, boa governança e sustentabilidade implicam mais confiança nas empresas e demais organizações, o que salvaguarda empregos e oportunidades profissionais para os brasileiros, favorecendo o direito fundamental ao trabalho. Faz sentido. Portanto, a decisão do STF é importante e benvinda. Todavia, raciocinar sobre o caso em questão, considerando disposições constitucionais, faz pensar (o pensamento é um dos vetores da evolução civilizatória!). Se o embate objeto deste breve artigo envolve direitos humanos e fundamentais por um lado, e boa administração pública por outro, isso cria oportunidade relevante de reflexão.
Aproveitamos a oportunidade para um breve comentário sobre a questão da política. A ideia da despolitização de estatais precisa ser vista com cuidado. Ocorre que a simples existência de uma estatal é uma decisão política: a Constituição Federal, que privilegia a livre iniciativa, autoriza, ao mesmo tempo, que as estatais existam quando isso for importante para o País e a Administração Pública fizer a diferença. Sendo assim, é relevante distinguir entre decisões, políticas e ações necessárias e interesses políticos deletérios à República e aos seus cidadãos. A existência das estatais é um assunto importante e que mereceria outro artigo.
Mesmo assim, provocando o leitor
Ainda que defendendo a boa governança e a sustentabilidade, conforme dito acima, gostaríamos, neste ponto, de provocar o leitor com três perguntas.
1. Preço da decisão
O resultado do embate acima mencionado, definido em prol do interesse coletivo e da governança, sugere, ao mesmo tempo, um preço a ser pago, em restrições a direitos individuais de cidadãos (ou de um conjunto de cidadãos). Sendo assim, indagamos: é possível identificar claramente tal preço, independentemente da opinião que a pessoa tenha sobre o caso?
2. Caminhos alternativos
A Lei das Estatais requereu um debate parlamentar na sua criação. Os parlamentares buscaram proteger a governança e administração dessas empresas. Sem entender que houve equívoco parlamentar, pois consideramos a Lei das Estatais importante, indagamos: seria o texto acima reproduzido o único caminho possível de proteger a governança das estatais quanto à possível interveniência política deletéria à sociedade? Haveria outra(s) alternativa(s) válida(s)?
Refletindo sobre as perguntas acima, como o leitor as responderia?
Mônica Mansur Brandão
Sugestões ao leitor:
Podcast a seguir, produzido por JOTA, no qual os participantes debatem, com foco jurídico e segundo sua visão, alguns aspectos das discussões do STF. Outras visões são possíveis.