A governança corporativa e a gestão organizacional desempenham papeis fundamentais no debate sobre privatizações. Analisar privatizações sobre tal perspectiva requer a consideração equilibrada tanto dos argumentos favoráveis quanto daqueles contrários.
Um disclosure importante
Privatizações podem ser de serviços públicos. Nesses serviços, contratos de concessão têm início e término definidos. O que se privatiza nesses casos, é a operação dos serviços públicos envolvidos, permanecendo o Estado como Poder Concedente e Fiscalizador, especialmente por meio de agências reguladoras. Estes são os casos das privatizações da Eletropaulo, Eletrobrás e Sabesp.
Em menor medida, há privatizações puras, completas, a exemplo daquelas da Vale e da Embraer, que não eram utilities, isto é, prestadores de serviços públicos. Essas privatizações podem, a exemplo das primeiras, ser objeto de intensos debates.
E existem as Parcerias Público-Privadas (PPPs), um tema relevante que merece um artigo dedicado às suas características. As PPPs não são privatizações, mas sim um instrumento de cooperação entre o setor público e a iniciativa privada para o desenvolvimento de atividades de interesse público, em busca de investimentos e eficiência na prestação de serviços.
Premissas sobre a privatização de serviços públicos
Dito isso, a seguir apresentamos quatro premissas não exaurientes sobre a privatização de serviços públicos, como instrumento de aprimoramento da governança corporativa e da gestão empresarial, com alguns prós e contras lado a lado, apontados pelos críticos.
Premissa 1: Privatizar melhora a governança e a gestão
Pró: Utilities privatizadas tendem a adotar uma gestão mais profissionalizada e baseada em boas ferramentas de gestão, com foco em metas claras, eficiência operacional, produtividade e controle de custos.
Contras: 1) A qualidade de produtos e serviços pode piorar; e, 2) os preços de produtos e serviços podem aumentar. Juntos, esses dois efeitos comprometem a eficácia do modelo. A governança, antes voltada ao binômio qualidade-rentabilidade mínima tecnicamente estabelecida (enlightened stakeholders model), pode ser substituída por um modelo puramente financeiro, focado apenas nos interesses dos sócios (simple finance model).
Premissa 2: Privatizar aumenta a transparência informacional
Pró: Com a presença de sócios privados e a adoção de padrões de mercado, empresas privatizadas seguem normas mais rigorosas de governança e divulgação de informações.
Contras: 1) Serviços públicos devem ser rigorosamente fiscalizados por agências reguladoras, independentemente do tipo de controle societário, estatal ou privado; e, 2) além disso, empresas com ações negociadas em bolsa, sejam privadas ou estatais, já estão sujeitas a exigências de governança corporativa.
Premissa 3: Privatizar reduz a ingerência política
Pró: A privatização reduz a influência política sobre a gestão das empresas, evitando decisões motivadas por interesses eleitorais.
Contra: Sócios e dirigentes de empresas privadas podem influenciar e/ou exercer pressões sobre agentes do setor público, com foco em interesses específicos, o que significa que a natureza dos interesses envolvidos muda, mas eles seguem existindo.
Premissa 4: Privatizar favorece a inovação e a sustentabilidade
Pró: A necessidade de gerar retorno para os sócios pode incentivar investimentos em inovação e sustentabilidade, beneficiando consumidores e a economia.
Contra: Se os contratos de concessão de serviços públicos não incluírem regras claras de inovação e sustentabilidade, tais avanços não ocorrerão de forma espontânea.
Dois exemplos de privatizações problemáticas
Para uma análise imparcial e desprovida de viés nacional, relembremos muito brevemente dois casos clássicos de privatizações de utilities que resultaram em problemas significativos. Tendo ocorrido há algumas décadas, eles merecem ser mencionados, como clássicos do que uma privatização não deve produzir.
British Rail (Reino Unido)
A privatização do sistema ferroviário britânico nos anos 1990 buscava aumentar a eficiência e reduzir custos. Contudo, a fragmentação da rede entre diversas operadoras privadas gerou falta de coordenação, aumentos expressivos de tarifas e a deterioração da qualidade do serviço. A insuficiência de investimentos resultou em graves acidentes ferroviários, forçando a retomada, pelo Estado, de partes do sistema. A percepção é que o modelo de privatização não foi eficaz, ao menos na medida desejada.
Companhia de Água de Buenos Aires (Argentina)
Nos anos 1990, a organização estatal que administrava o fornecimento de água em Buenos Aires foi privatizada e transferida a um consórcio internacional. A privatização levou a aumentos abusivos nas tarifas, sem melhorias significativas na qualidade do serviço. A empresa privada descumpriu as metas de expansão e investimento previstas no contrato, resultando na reestatização do serviço em 2006, a fim de assegurar um abastecimento adequado à população.
Note-se, nos dois exemplos em questão, elementos comuns: carência de investimentos, queda de qualidade, aumento de preços. Será que as privatizações problemáticas pararam nos anos 1990?
Além dos casos anteriores, é interessante mencionar a Eskom, empresa estatal de eletricidade da África do Sul. Embora não tenha sido privatizada, a Eskom iniciou, em 2019, um arranjo de reestruturação que previa maior participação do setor privado na geração de energia. Apesar das intenções anunciadas de modernizar o setor elétrico, houve cortes frequentes no fornecimento de eletricidade (load sheddings). A ausência de investimentos adequados na expansão e modernização de redes elétricas comprometeu a confiabilidade do sistema elétrico do País e onerou os consumidores.
Qual é o melhor caminho?
Os argumentos relacionados às quatro premissas inicialmente apresentadas e os três exemplos anteriores atestam que privatizar ou aportar agentes privados às prestações de serviços públicos não devem ser vistos como panaceias e/ou algo que, automaticamente, favorece os cidadãos.
Privatizações de utilities, para realmente serem bem sucedidas, devem ser acompanhadas por mecanismos legais e regulatórios muito robustos e que realmente assegurem benefícios para a população, garantindo que boas práticas de governança corporativa e gestão organizacional sejam efetivamente aplicadas. Sem esses elementos, o risco de ocorrerem privatizações mal sucedidas é concreto. E significativo.
Com indicadores de qualidade, preço e satisfação, é possível medir a eficácia das privatizações de empresas públicas e identificar eventuais falhas de regulamentação. Com bons indicadores e acompanhamento, é possível avaliar e comparar o "antes" e o "após a privatização".
Cabe às agências reguladoras monitorar com rigor a atuação das empresas que prestam serviços públicos, sejam elas estatais ou privadas, garantindo qualidade, cumprimento das obrigações contratuais e o bom atendimento à população servida. E cabe aos cidadãos atentar aos serviços que a eles são devidos, bem como cobrar o que for justo de forma lícita.
Por fim, não podemos deixar de destacar que as transferências de controle de empresas estatais nacionais para empresas estatais de países estrangeiros, por vezes presentes em nosso País, não são privatizações. Não faz sentido serem apresentadas politicamente como privatizações.
Mônica Mansur Brandão
Veja também os vídeos seguintes, com visões interessantes sobre as privatizações e a participação de agentes privados em atividades a cargo do setor público: